O Contrato Social de Rousseau"




   Se a Ética está preocupada com uma atitude correta e com o bem último de cada individuo e a Política em aplicar estas mesmas questões a uma dimensão coletiva, logo, a Política é um desdobramento natural da Ética. E da mesma forma, se o que subjaz uma ação é uma íntima intenção que nasce da vontade pessoal, então, só pode acontecer o mesmo com uma vontade geral. Mas contudo, se a Ética é um concerto harmónico da natureza do homem à sua razão, na realidade o mesmo não acontece com uma vontade geral. E se fosse o homem na sua origem um ser livre e benigno, que devia adormecer o seu intelecto numa ininterrupta reconversão natal, então, o resultado seria um tipo de niilismo permanente, uma constante redução do homem a um solitário vazio existencial, a uma autêntica anomia, onde a única convenção real seria, através de um divino ou sublime insensato caos natural, manter a ausência de uma superficial ordem social, pois evidentemente, o efeito moral de normas humanas só poderia corromper o homem e qualquer pacto social seria sempre um tipo de pecado original, onde nem uma suposta equitativa vontade geral poderia garantir a figurada liberdade.

 

   Contudo, limitado pela sua humanidade e moldado pela sua sensibilidade e capacidade intelectual, Rousseau, ícone da revolução francesa, foi um dos principais filósofos do iluminismo e um dos seus maiores críticos, pois em oposição ao ateísmo, ceticismo e materialismo, revoltou-se contra os seus ilustrados contemporâneos. E sendo adepto de uma religião natural, numa profunda fé e devoção ao delicioso espetáculo Divino da Natureza, tentou encontrar Deus em seu próprio coração e transformou-se no precursor do Romantismo. Porém, num tipo de fusão interna, expressou as suas emoções de um modo intelectualizado e com grande intensidade tentou persuadir-nos, ao especular determinados conceitos na sua teoria política. No entanto, ao privilegiar os sentidos em prejuízo do intelecto, reduz o conceito de bem comum, a uma utilidade que só pode ter como fonte cálculos individuais empíricos, que basicamente sensualistas são ocultos por uma modesta vontade geral. Contudo, opondo-se à erudição puramente racionalista e intelectualista dos enciclopedistas, utilizou um hipotético método dedutivo. Mas podemos com algum rigor facilmente perceber, que certos argumentos, não passam de simples generalizações que resultam de inferências concretas, particulares, pois nem sempre os factos são totalmente afastados. E assim sendo, o que fundamentalmente desvela o seu texto (Rousseau, O Contrato Social: 2010), “pequeno tratado (…) tirado de uma obra mais extensa” (ob. cit. p.13), são a meu ver generalizações precipitadas.

 

   E sem abdicar daquele salto congenial, que os românticos hermeneutas numa natural comunhão de almas davam à compreensão, ao analisar a força persuasiva dos seus argumentos, irei no decorrer da minha interpretação (devido a este reduzido espaço) abdicar de alguns conceitos e em simultâneo, apresentar e clarificar as 3 principais representações mentais que para mim constituem as frágeis bases da sua teoria: a Liberdade, que sendo em Rousseau inicialmente inata, é de seguida perdida e depois roubada e aprisionada, para depois à força ser reconquistada através de uma Vontade Geral, que através da igualdade, salva e transfigura aquela inocente liberdade numa moral heterónoma e duplamente dependente. Pois “Os limites do possível, nas questões morais, são menos estreitos do que supomos: são as nossas fraquezas, os nossos vícios, os nossos preconceitos que os restringem.” (p.106) Ou seja, é através dos mais profundos costumes que nascem as Leis.

 

“O poder legislativo é o coração do Estado, o poder executivo é o seu cérebro, que transmite movimento a todos os seus órgãos. O cérebro pode paralisar sem que o indivíduo morra. (…) contudo se o coração deixa de cumprir as suas funções, ele morre.” (p.105)

 

   E porque subjacente aos costumes estão hábitos enraizados, estes só podem convergir através de interesses subjetivos em meras opiniões ou crenças, mesmo que de uma forma inconsciente, pois:

 

“a mais importante de todas, lei que (…) se grava (…) no coração dos cidadãos; (…) e, gradualmente, substitui a força do hábito pela autoridade. Quero referir-me aos usos, aos costumes e, principalmente, à opinião; (…) parte de que o grande legislador se ocupa em segredo, enquanto parece limitar-se aos regulamentos particulares, que não são mais do que o arco da abóbada a que os costumes, mais lentos a nascer, darão por fim o inabalável fecho.” (p. 68)

 

   E logo na sua introdução, Rousseau diz que procura uma regra: “que considere os homens tais como são e as leis como devem ser.” (p.15) No entanto o que faz é pressagiar através de princípios gerais de como o individuo deveria ser e não como é na realidade, para muito subtilmente, no decorrer dos seus argumentos partir das características concretas dos indivíduos para Legislar. Isto é, infere através dos supracitados costumes intrínsecos, mas tenta pretender o contrário, pois o seu principal objetivo é encontrar um Estado Social legítimo, próximo de uma vontade geral pura e distante da corrupção. Porém, os costumes são hábitos, e estes são atos mais ou menos inconscientes, que relativos às circunstâncias, convêm e correspondem às tendências dos indivíduos.

 

“O tratado social tem como finalidade a conservação dos contratantes. Quem pretende o fim, aceita os meios” (p.48) “estes fins gerais de toda a boa legislação devem modificar-se em cada país pelas circunstâncias que surgem, quer da situação local, quer do caracter dos habitantes” (p.66) [pois] “O que torna a constituição de um Estado verdadeiramente sólida e estável é o facto de as conveniências serem de tal modo observadas que as circunstâncias naturais e as leis, sempre se harmonizem nos mesmos pontos” (p.67) [E] “pelo modo como são tratados os negócios públicos, se pode ter uma ideia bastante exata do Estado em que se encontram os costumes e a saúde do corpo político.” (p.123)

 

   Quanto à sua célebre frase: “O homem nasceu livre mas em toda a parte está a ferros.” (p.17) É uma relação de premissas que não passa de pura especulação ou mera hipótese, que levanta o véu de um valor contingente e que deixa em aberto o verdadeiro significado da palavra liberdade, o seu sentido ou utilidade, pois Rousseau não vai ao fundo da raiz do problema. “Como se deu esta transformação? Ignoro-o.” (ibid)

 

   De seguida diz que “A mais antiga de todas as Sociedades, a única Natural, é a família: (…) Os filhos, livres da obediência que devem, ao pai; o pai, livre dos cuidados que deve aos filhos, recupera a independência.” (ibid) Mas caso não tenha o homem nascido livre, então nada lhe é retirado e nada há a recuperar ou a conquistar! Sendo que ao mesmo tempo, admite que os homens são desde sempre dependentes, pelo menos da família. Logo, nunca podem ter experimentado essa suposta liberdade selvagem, mas antes um tipo de interdependência, um tipo de natural convenção familiar à nascença destinada.

 

   E se hipoteticamente há uma liberdade essencial, esta tanto pode nascer e perder a suposta liberdade, como não! E caso a existência preceda qualquer essência e a liberdade em devir possa ser encontrada e perdida, então, a mesma não é inapta. E a confirmação do que digo é que mais tarde “o forçam a ser livre, pois esta é a condição pela qual cada cidadão que se entrega à pátria fica defendido de qualquer dependência pessoal” (p.31) E Rousseau confirma: “a parte mais instrutiva dos anais dos povos, que é a história do seu nascimento, é a que mais nos falta.” [Logo] “como ainda não vimos surgir povos, só dispomos de conjeturas para explicar como se formaram.” (p.129)

 

   E se no estado de natureza, o primeiro humano natural selvagem não tinha linguagem, noção de paixão, amor, união, nem de bem ou de mal, mas apenas o prazer imediato, então, o ser humano primitivo é inconscientemente predeterminado e sem poder de discernimento. E se ao mesmo tempo a racionalidade está em potência e não em ato, então, utilizando o seu método hipotético de experiência mental, qualquer animal poderá vir a tornar-se perfectível e assim deliberar.

 

   Rousseau tem pois a tarefa de explicar o modo como se pode formar um estado sem sacrificar a liberdade e está convicto de que tem a fórmula. Combina a liberdade genuína com a teoria da vontade geral e diz que o Contrato Social, tenta “Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado e em que cada uma, ao unir-se a todos, só a si mesmo obedeça e continue tão livre como antes.” (p.27) Porém contradiz-se, pois “quando assim não acontece (…) a liberdade deixa de existir.” (p.125) ou seja, tão livre como antes se cooperar, caso contrário, a liberdade deixa de existir.



   E apoiado numa ideia comparável à de liberdade, ao pressupor que o ser humano nasce livre e nasce bom, subentende que um tipo de interesse comum é por todos, desejável. Isto é, ao mesmo tempo que tenta distinguir, uma soma de vontades individuais, de uma determinada vontade geral para o bem comum, ao inferir que o critério para esse bem é feito por exclusão de partes, faz com que seja impossível avaliar o que é o melhor, pois o que é bom é uma qualidade e esta é incomensurável. Logo, é incorreta a tentativa de Rousseau de maximizar o bem comum com a passagem de uma vontade pessoal para uma vontade coletiva, pois:

 

“a vontade geral é sempre reta e tende para a utilidade pública: mas não se conclui daqui que as deliberações do povo tenham sempre a mesma retidão. [Ela] Quer constantemente o seu bem mas, muitas vezes, não o distingue.” (p.42) [Pois] “Certa vez em que um homem de maus costumes deu uma boa opinião no conselho de Esparta, os éforos, sem lhe prestarem atenção, fizeram com que a mesma sugestão fosse exposta por um cidadão virtuoso.” (p.146)

 

   Rousseau ao declarar a vontade geral, parte de princípios gerais imaginados, contudo, acaba com a afirmação de que uma lei é feita pelos costumes particulares e pelas opiniões acerca destes.

 

A vontade geral “só atende ao interesse comum, a outra só escuta o interesse privado, e não é mais do que a soma das vontades particulares: mas retirai destas mesmas vontades os prós e os contras que entre si se anulam e restará a vontade geral, como soma dessas diferenças.” (p.42) [Mas sendo que] “Em todos os povos, não é a natureza, mas a opinião quem decide na escolha dos seus prazeres. Corrigi as opiniões dos homens e os seus costumes tornar-se-ão mais puros.” (p.145) [Pois] “Quem julga os costumes, julga a honra e da opinião tira a sua lei.” (ibid) [Porém] “para que a vontade geral esteja bem representada, cumpre (…) que cada cidadão não tenha outra opinião que não seja a sua:” (p.43)

 

   Mesmo que as pessoas através da vontade geral fossem adequadas ou como deveriam ser, tal posição só poderia ser o resultado de um tipo de egoísmo, em que cada um procura a sua própria conveniência e não o melhor para o bem comum, pois aquela vontade geral não resulta de um bom senso, mas de um médio senso generalizado. “Deve entender-se que o que generaliza a vontade reside mais no interesse que une as diferentes vozes do que no seu número” (p.45)

 

   E quando diz que “A soberania (…) consiste essencialmente na vontade geral e a vontade não tem representantes; ou é ela ou não é; não há meio-termo.” (p.110) Está através do princípio geral de que o todo é mais importante que a soma das partes, a dizer que o todo é o melhor, pois está a deduzir uma superioridade moral para a vontade geral, mas sendo esta o resultado da exclusão do mais e do menos, o que resta não é necessariamente bom, não é a melhor vontade para o bem comum, pois ela simplesmente provém de um termo mediano.  

 

  Diz que a Vontade geral “Não é um acordo, entre o superior e o inferior, mas um pacto entre o todo e cada um dos seus membros:” (p.46) Mas se é a vontade de um povo Uno e não a soma quantitativa da vontade geral de todos, então isto quer dizer que existem determinadas características comuns nos indivíduos! Logo, o que se abstrai do mais e do menos são qualidades da vontade geral, valores superiores ou inferiores. Mas qual o critério para definir a qualidade da vontade geral? Logicamente, o que resta da generalização pode ser utilmente bom mas não ser necessariamente o melhor. Logo, a soberania não é infalível, pois do modesto, tanto pode resultar a virtude do bem como a do mal comum, pois esta noção de vontade geral, tenta por um lado conjeturar um ideal distante do que o povo é na realidade, pressupondo o que o cidadão deveria ser, sem características, ideias ou desejos, mas onde o legislador, cidadão e súbdito, através de meras opiniões apoiadas em costumes que estão na moda, submete-se à lei que ele próprio cria.

 

“Quando se propõe uma lei, o que se pede de cada um não é que a aprove ou a rejeite, mas se está ou não conforme com a vontade geral, que é também a sua: cada cidadão, ao entregar o seu voto, dá assim a sua opinião e, pela contagem dos votos, exprime-se a vontade geral. [Mas] Quando vence a opinião contrária à minha, isso só prova que eu estava enganado e que o que eu considerava como sendo a vontade geral, não o era afinal” (p.125) [Pois quando] “o interesse comum (…) encontra oponentes; a unanimidade já não reina entre os votantes; a vontade geral já não é a vontade de todos; verificam-se posições contrárias e a melhor das opiniões não é aceite sem discussões.” (p.122) [Mas arbitrariamente] “quanto mais as opiniões se aproximarem da unanimidade, mais dominante será a vontade geral (p.123)  

 

   Mas para concluir, vejamos melhor a dicotomia do seu método, entre o geral e o particular:

 

“a vontade geral, para verdadeiramente o ser, deve sê-lo tanto nos fins como na sua essência; que deve partir de todos para se aplicar a todos; e que perde a sua natural retidão quando tende para alguma finalidade individual e determinada” (p.45) [Pois] “Se a vontade particular não pode representar a vontade geral, também esta, por sua vez, muda de natureza, ao ter um objetivo particular, sendo-lhe impossível, visto ser geral, estabelecer juízos, quer sobre um homem, quer sobre um facto.” (p.45) [Porém] “O cidadão aprova todas as leis, aquelas que não obtiveram o seu acordo e até as que o punem se não as respeitar.” (p.125) [Pois] “A opinião pública é como que uma lei de que o censor é o ministro e que, seguindo o exemplo do príncipe, se aplica aos casos individuais” (p.145)

 

   Mas assim como não é justo castigar um inocente, mesmo quando a maioria dos cidadãos se sentem felizes ao suporem a sua incorreta culpabilidade, também não é adequado que uma medíocre e polida vontade geral, seja absoluta em prejuízo de uma minoria mais adequada.

 

Bibliografia: Rousseau, Jean-Jacques (2010), O Contrato Social,
                          trad. de Mário Franco de Sousa, Lisboa: Editorial Presença, Lda [1762]