Nietzsche "




   Na sua obra de tom bastante biográfico Ecce Homo, “Como se chega a ser o que se é” (Nietzsche, 1979) apresenta uma breve mas profunda síntese de todos os livros que tinha escrito até a altura. E começa por dizer no capítulo sobre o Crepúsculo dos Ídolos que esta sua obra “…de tom sereno e fatal (…) representa, entre os livros em geral, uma excepção: nada mais seguro, mais autónomo, mais revolucionário – e mais maldoso.” (ob. cit. p. 147)

   E numa segunda premissa que se segue diz-nos: “Se se pretende formar rapidamente ideia de como de mim tudo estava de pernas para o ar, deve começar-se por ler esta obra.” (ibid.) E conclui este raciocínio, com uma explicação do amplo significado do conceito de ídolo: “…é precisamente o que até agora se chamou verdade.” [Logo] “Crepúsculo dos ídolos significa: estamos no fim das velhas verdades.” (ibid.) Ou seja, ele afirma a certeza e a independência da sua visão, e que consciente da sua atitude revolucionária ou se quisermos da originalidade do seu pensamento, que este é maldoso e que vai fazer estragos. E maldoso tem aqui uma concepção positiva e construtiva, precisamente porque o que ele pretende, é de uma vez por todas, com o seu martelo, derrubar tudo aquilo que já está de pernas para o ar. Isto é, os ídolos que são as velhas verdades, mas que são também os autores que lhes estão associadas.

   E por isso mesmo, no capítulo, com uma subtil agressividade ele diz: “Não há realidade [nem] idealidade que neste livro não seja aflorada” (ibid). E continua ”Não só os ídolos eternos, como também outros mais recentes, e (…) mais senis. A ideia moderna.” (ibid.) E o que ele nos está a dizer, é que irá inteligentemente refutar e ferozmente combater, quer os autores e pensamentos idealistas, quer os realistas. As ideias que permanecem sempre com a sua falsa autoridade como verdades perenes ao longo do tempo, assim como algumas ideias contemporâneas dele e que ele considera serem ainda mais senis, fracas e doentes.

   E de seguida, na sequência do que foi dito, ele apresenta uma bela metáfora, na qual faz uma analogia consigo próprio, pois assemelha o seu pensamento ou atitude a uma ventania. Eis o que ele diz: “Uma ventania sopra através das árvores, e os frutos, [ou seja, as verdades, antigas e modernas, realistas e idealistas] por todos os lados caem no chão” (p. 148).

   E afirma: “Há neste livro a exuberância de um fecundo outono.” (ibid.) E o que ele quer dizer é que após a sua própria ventania, os frutos ou as verdades caiem por terra com a sua filosofia crítica, e que em exuberância, ou seja, com vigor, vitalidade ou entusiasmo, da transformação de um fecundo solo fértil e que é ele mesmo, uma nova filosofia nascerá, a sua filosofia, pois de seguida ele afirma, que aquilo que colheremos, já não serão frutos ou verdades problemáticas, mas antes, verdades autênticas.

   Podemos pois encontrar aqui o seu humanismo na linha de Feuerbach, mas também a autenticidade de Kierkegaard. Mas acima de tudo a influência do romantismo e da natureza, que parece ter em Nietzsche uma concepção muito próxima dos pré-socráticos.               

   Ele afirma: “Só eu tenho na mão o metro para as verdades, só eu posso julga-las.” (ibid.) Eis pois aqui a sua certeza humana, a sua segurança inabalável, a sua unicidade como indivíduo, e se quisermos, o seu tom visionário ou quase profético. Mas também a influencia de seu mestre Schopenhauer, pois ele próprio diz de seguida: “é como se outra forma de consciência tivesse surgido, como se a vontade tivesse acendido em mim uma luz no caminho (ibid.)

   E de seguida, ele faz uma desconstrução a meu ver muito semelhante ao que fazia Feuerbach, pois inverte o sentido dos conceitos para chegar á verdade, mas a meu ver ainda vai mais fundo, pois ele aniquila o próprio conceito quando diz: “Ao caminho em declive - chamavam os homens caminho da verdade [e que] o homem bom era precisamente o que menos consciência tinha do bom caminho” (ibid.) E em analogia, se em Feuerbach, as qualidades ou características ou predicados como a bondade por exemplo, são divinas precisamente porque estão no homem que é bom e não em Deus, aqui o que Nietzsche no fundo diz, é que se o homem maldoso é aquele que mais consciência tem do bom caminho, então, o homem tem em si o bem e o mal, sendo que o mal é o bom caminho que leva ao bem. Logo, o que ele a meu ver está a querer dizer, é que o caminho correcto está acima ou para além do bem e do mal. E tudo isto, a meu ver, é o mesmo que dizer que as doutrinas que estimam estes valores, nada significam para ele. E daí o seu niilismo em relação aos valores.   

   E o que contribui para o peso do que acabou de ser dito, é que com uma severa ironia ele afirma: “isto muito a sério, ninguém conhecia antes de mim o bom caminho, o caminho das alturas. (ibid.) E termina este raciocínio com a afirmação de uma inevitabilidade que lhe parece destinada: “Só desde agora há renovadas esperanças e tarefas, novos caminhos para a cultura, cujo sulco [ou seja, marca ou vinco] está já traçado… Sou o alegre pioneiro… E por isso mesmo sou uma fatalidade.” (ibid.)

   E para nos assegurar desta sua certeza inabalável e da enorme importância do seu pensamento e do seu trabalho, no capítulo, ele termina esta síntese ou introdução, sublinhando que mal acabou esta obra, empreendeu sem perder sequer um dia, “…a enorme tarefa da transmutação, [ou seja, de uma transformação dos valores morais tradicionais, o que significa que como moralista, o seu niilismo é construtivo, pois ele tem a visão de que após a martelada, há uma nova formação dos valores] e continua: “animado por um sentimento de orgulho sem par, seguro a cada instante da minha imortalidade, inscrevendo, em tábuas de bronze, os sucessivos símbolos, com segurança fatal.” (ibid.)

   E a conclusão que eu retiro, é que se atrás parecia haver um niilismo negativo, em que não existiam juízos de valor em relação ao bem e ao mal, aqui já podemos perceber que não será bem assim, ou seja, que do aparente nada, símbolos são escritos em tábuas de bronze.

   E interessante será perceber a semelhança com Schopenhauer, pois este, ao mesmo tempo que atribui ao gênio a importância de estar mais perto da verdade, também lhe atribui um papel secundário de simples mediador entre a verdade e a obra de arte. E aqui, atribuindo-se a si próprio génio, Nietzsche coloca-se também como mediador, quando numa outra deliciosa metáfora diz: que quando escreveu o prefácio “uma manhã, depois de o ter revisto, saí a espairecer, achei perante mim o dia mais lindo que brilhava sobre o alto (…) um dia luminoso e maravilhoso, com toda a gama de coloridos entre o céu e a terra.” (p. 149). 

   Podemos ver a importância que para ele tem a natureza, a luz, o sol, o dia, ou seja, a vida… sendo ele um vitalista.

   E o seu humanismo, ironia, ou como ele diz, maldade, podemos notar quando ele diz: “ ao sétimo dia, descanso de um Deus que passeia pelas margens do pó.” (ibid.)

   E de seguida conclui com uma analogia entre o seu estado de espírito e os quadros de um pintor do séc. XVII, um naturalista que pintava sublimes paisagens. Diz assim: “Nunca vivi um outono assim e nunca pude supor que tal coisa fosse possível: um Claude Lorrain transposto para o infinito, e, sobre a terra, uma sucessão de dias de inalterável perfeição.” (ibid.)

   Quanto ao próprio livro Crepúsculo dos Ídolos, “Como se filosofa com o martelo” (Nietzsche) o tradutor Artur Mourão numa advertência que antecede o prefácio, refere que o livro foi escrito na década de 80, que é um dos períodos mais criativos de Nietzsche. E começa por dizer numa breve análise:

“Crepúsculo dos ídolos – trata-se de uma declaração de guerra, no âmbito da grande estratégia Nietzschiana da transmutação de todos os valores, contra a modernidade e a ciência, contra a filosofia e a sua racionalidade, contra o idealismo, contra a religião, em especial o cristianismo, e a moral, a partir de uma argumentação antropológica em grande parte Darwiniana.” (ob. cit. p.10).

   Artur Mourão refere também que, “Nietzsche apresenta ao mesmo tempo os fundamentos da sua ontologia, que lhe serve de ponto de arranque para o seu intuito de destruição da tradição ocidental e de eliminação da dualidade entre aparência e verdadeiro ser.” (ibid.)

   E aqui podemos ver que também Nietzsche, ainda se encontra neste combate pós kantiano em relação á dicotomia entre aparência ou fenómeno como representação, e realidade, existência ou verdadeiro ser ontológico.

   E o tradutor termina com uma referência ao estilo de Nietzsche e diz que ele tem um “cunho aforismático, incisivo, subtilmente alusivo, marcadamente anafórico e quase sempre violento.” (ibid.)
   
   E no prefácio agora feito pelo próprio Nietzsche, ele começa por expor os seus estados de espírito, a sua experiencia emocional, o peso ou intensidade psicológica e psicossocial que recai sobre ele, assim como também, as estratégias comportamentais que utiliza para realizar a sua tarefa hercúlea. E diz:

“Não é proeza pequena conservar a serenidade no meio de uma ocupação sombria e desmesuradamente cheia de responsabilidade; e, no entanto que há de mais necessário que a serenidade? [pois] Nenhuma coisa tem êxito se nela não tiver parte a orgulhosa alegria. [e que] Só o excesso de força é prova da força.” (p.11)

   E de seguida vai directo ao assunto. Diz-nos ao que vem e a quem como guerreiro vai recorrer para adquirir inspiração, força ou se quisermos, poder: “Uma transmutação de todos os valores, este ponto de interrogação tão negro, tão monstruoso, que arroja sombras sobre quem o escreve, uma tal fatalidade de deveres compele, a todo o momento, a correr para o sol…” (ibid.)

   E ao facto evidente de se considerar um guerreiro solar, a meu ver, ele tenta explicar que é um guerreiro ferido de uma profunda dor. E que esta dor, como um tipo de antibiótico, também será sua aliada neste combate subtilmente feroz, pois ele diz:

“A guerra foi sempre a grande sabedoria de todos os espíritos que se interiorizam, que se tornam demasiado profundos; [e remata] Na própria ferida reside o remédio. [E apresenta um aforismo evidente] Crescem pela dor os espíritos e se fortalece a virtude.” (ibid.)

   E o que ele no fundo quer dizer, é que o próprio psicólogo, antes de fornecer uma cura, uma solução ou prescrição, tem que em primeiro lugar, ele próprio, tomar o seu próprio remédio.

   E continua: “Outra cura, em certos casos por mim ainda mais desejada, é sondar os ídolos” (p.12) Ou seja, sondar as falsas verdades ou falsas autoridades vazias de conteúdo, pois vejamos, ele refere-se não apenas a ele próprio, mas agora também ao mundo exterior:

“Há no mundo mais ídolos do que realidades: eis o meu mau-olhado para este mundo, eis também o meu mau ouvido… Perguntar uma vez aqui com o martelo e ouvir, talvez, como resposta aquele som vazio que emana das vísceras inchadas – (…) – para mim, velho psicólogo e caçador de ratos, diante do qual se deve dizer em voz alta o que havia de permanecer secreto…” (ibid.)

   E o que ele quer dizer, é que as ideias falsas e vazias, que certas autoridades de peito inchado gostariam de manter em segredo, ele as denunciará em voz alta. E remete-nos novamente para a profundidade e perspicácia do seu ser interno e diz: “ que encanto para quem, por detrás das orelhas, ainda tem outras orelhas…” (ibid.)   

   E fala-nos da expectativa ou objectivo que tem, pois de seguida refere um tipo de retorno a uma época dourada, quando nos diz que este texto: “é, acima de tudo, uma recuperação, uma mancha solar, uma escapadela para o ócio feita por um psicólogo.” (ibid.)

   Mas alerta-nos: “Este breve escrito é uma grande declaração de guerra; e, quanto ao escrutínio dos ídolos, desta vez não são ídolos temporais, mas ídolos eternos,…” (ibid.) Isto é, ele refere que vai combater as ideias, autores ou crenças absolutas, aquelas verdades que falsas para além do tempo ou da época, parecem querer sempre resistir, pois como ele diz: “não há ídolos mais antigos, nem mais convencidos ou mais arrogantes… Nem mais vazios…” (ibid.) Ou seja, ele diz que não é devido a estas características que se deve acreditar neles, pois que em diversos casos nem sequer são chamados ídolos.  

   E quanto ao tema que ele vai abordar no capítulo: A moral como contra natureza, o que isto significa, é que ele vai abordar e refutar, aquela moral que ele considera ser incompatível e até contraditória com a própria natureza humana.   

   E logo no capítulo, ele começa por referir que as paixões têm uma fase durante a qual são negativas, e que por isso, oprimem a pessoa. Mas que numa fase posterior, a paixão casa-se com o espírito, ou seja, com a mente. E que o resultado desta união é uma espiritualização imanente da paixão.

   E referindo-se ao novo testamento, ele diz que no entanto: “Outrora, (…) fazia-se a guerra á paixão, conspirava-se para a sua aniquilação, [e que neste sentido] todos os velhos monstros da moral se mostravam unanimes…” (p. 37) E cita um exemplo do novo testamento: “Ali se diz, (…) com aplicação proveitosa à sexualidade: se o teu olho te escandaliza, arranca-o;” (ibid.) Ou seja, o que ele mais uma vez quer dizer, é que a forma que eles tinham de lidar com as paixões, era de uma forma agressiva e restritiva, e assim, recusando-as, contrariavam a própria natureza humana. E conclui:

 “Aniquilar as paixões e os desejos para simplesmente se precaver da sua estupidez e das consequências desagradáveis da sua estupidez revelasse-nos hoje, apenas como uma forma aguda de estupidez. [pois] Já não admirámos os dentistas que extraem os dentes para que deixem de doer… (ibid.)

   E de seguida ele denuncia e diz:

“no solo em que brotou o cristianismo, o conceito de espiritualização da paixão de nenhum modo se podia conceber. (…) A primitiva igreja lutou, como se sabe, contra os inteligentes a favor dos pobres de espírito: como se poderia dela esperar uma guerra inteligente contra a paixão? [pois] A igreja combate a paixão mutilando cada sentido: a sua prática, a sua cura, é a castração. [e] Não pergunta: como se espiritualiza, como se embeleza, diviniza um desejo?” (p. 38)

   Ou seja, ele diz que aquela aceitação inicial de uma união ou casamento da paixão com o espírito, que resulta numa espiritualização, essa natural e inteligente aceitação, não é realizada, mas pelo contrário. Pois “Em todas as épocas basearam a enfase na disciplina sobre a extirpação (da sensualidade, do orgulho, da ânsia do poder, da avareza, da sede de vingança). (ibid.) Ou seja, que sempre imperou a exterminação de tudo aquilo que é natural no ser humano.

   E simultaneamente, ao mesmo tempo que continua a sua crítica, apresenta ou expõe a sua tendência filosófica como vitalista, quando diz: “…arrancar as paixões pela raiz equivale a extirpar a vida pela raiz: [logo] a prática da igreja é inimiga da vida… (ibid.)

   E no capítulo ele define por intensidade ou grau, 3 tipos ou formas de degenerescência na natureza dos homens. Mas note-se, ironicamente e do ponto de vista do cristianismo.

   E acerca da forma, que é a menos intensa, ele diz: “…a fraqueza da vontade, em termos mais precisos, a incapacidade de não reagir a um estímulo, é ela própria apenas uma (…) forma de degenerescência. (ibid.)

   Mas que aquele “…mesmo remédio, a mutilação, a extirpação, é instintivamente escolhido na luta contra um desejo por aqueles que são demasiado débeis de vontade, demasiado degenerados, para conseguirem impor [ao desejo] uma medida.” (ibid.) E que esta natureza ou forma demasiada degenerada, porque já tem um grau elevado de degeneração, já precisa de uma definitiva declaração de hostilidade. Ou seja, que esta natureza precisa de um remédio radical, precisa de ser incluída num tipo de ordem de monges católicos, onde se pratica um grande rigor no estilo de vida. Onde isolados do mundo secular externo, cultivam a oração e a contemplação.

   E de seguida, ele fala de um tipo de abismo que relaciona com a paixão. E no meu entender, ele quer dizer que o abismo, resulta do facto de que, na natureza destes indivíduos, é feita um tipo de transferência semelhante à projecção de que nos fala Feuerbach, daqueles desejos e paixões humanas, para uma paixão objectivada num ser que neste caso é o Deus cristão.

   E por isso mesmo, devido a esse enorme abismo, de seguida ele expõe o que considera ser o tipo ou forma de degenerescência de maior grau ou intensidade, que se determina num temperamento mais excessivo. E diz: “A inimizade radical, o ódio de morte em relação a sensualidade, é um sintoma que faz pensar: (ibid.) Pois “…essa hostilidade, esse ódio, só atinge o seu clímax quando tais naturezas já perderam a firmeza suficiente para se entregarem a cura radical, ou à eliminação do seu demónio.” (p. 39)

   Ou seja, em suma, o que ele quer dizer nestas últimas premissas, é que nesta luta contra as paixões, desejos ou sentidos, existem aquelas naturezas que são meramente fracas de vontade, as que precisam de um remédio radical e que por isso se isolam numa ordem erudita, mas que existem aquelas que entre estes últimos radicais eruditos, que frustradas e sem força suficiente para se manterem no isolamento, sentem-se de certa forma tão obrigadas a permanecer nesta dupla contradição interna, que perdem a firmeza, ou seja, perdem a integridade e tornam-se híper radicais ou extremistas. E podemos aqui salientar e fazer uma analogia com a luta interna das faculdades da alma de Kant, entre o querer da razão e os desejos da emoção ou da paixão. E de toda esta consequência, ele de seguida aproveita e faz uma maior generalização e diz:

“Veja-se toda a história dos sacerdotes e filósofos, e inclusivo dos artistas. A maior virulência contra os sentidos não foi proferida por impotentes, também não por ascetas, mas por ascetas impossíveis, por aqueles que se viram forçados a ser ascetas…” (ibid.)

   No capítulo ele resolve o tema sobre o casamento da paixão com o espírito, como sendo um triunfo. E na linha de Feuerbach resolve esta questão através do amor e afirma: “A espiritualização da sensualidade chama-se amor: constitui um grande triunfo sobre o cristianismo.” (ibid.)

   E de seguida introduz um novo tema e diz: “Um outro triunfo é a nossa espiritualização da inimizade. [que] Consiste em compreender o profundo valor que tem o possuir inimigos: numa palavra, em proceder e tirar conclusões em contradição com o que outrora se fez e concluiu.” (ibid.) Ou seja, ele pretende utilizar o mesmo método que consiste em superar a negação e aceitar a inimizade como característica natural do ser humano, e assim espiritualizar a inimizade sem erradica-la, mas pelo contrário, valorizá-la.

   E através de diferentes exemplos, uns religiosos e outros políticos, ele afirma a necessidade da oposição para os imoralistas assim como para o regime democrático. E faz para isso dois tipos de analogias, umas externas e mais sociológicas e outras internas e mais psicológicas, para assim explicar a necessidade da contradição da inimizade. Ou seja, ele considera que resolver as contradições, é como transmutar um aparente defeito naquilo que no fundo ele realmente é, virtude natural, atribuindo positividade aquilo que inicialmente é apreendido como um dado ou um valor absolutamente negativo. Vejamos o que ele diz:

“A igreja quis em todas as épocas a aniquilação de todos os inimigos; [mas] nós, moralistas e anticristos, vemos uma vantagem nossa no facto de a igreja existir…” [e quanto á política ele diz] “Também no político a inimizade se tornou agora mais espiritual – muito mais inteligente, muito mais reflexiva, muito mais gentil. (…) todos os partidos compreendem que o seu interesse de autoconservação está em que o partido oposto não perca as suas forças;” (ibid.)

   E no que diz respeito ao plano interno, mais psicológico e antropológico, ele diz-nos: “Não nos comportamos de maneira diferente perante o inimigo interior. Também neste caso espiritualizamos a inimizade, também aqui viemos a compreender o seu valor.” (ibid.)

   E de seguida diz-nos que o lado negativo das contradições internas, são uma energia, uma força, ou se quisermos, conhecendo o seu pensamento, vontade de poder: “Alguém só é frutífero [ou seja, bem sucedido] á custa de ser rico em contradições; [pois] só se permanece jovem com a condição de a alma não se diluir, [e] não desejar a paz…” (p. 40) E o que ele quer mesmo dizer é que esse desejo ou aspiração cristã da paz de alma, é uma ilusão que nos retira a energia natural, que ele compara por analogia a ser jovem. Ou seja, a paz de alma é estranho para a jovialidade da alma, pois dilui a energia que temos em fraqueza de personalidade. E por isso ele diz: “Renunciou-se á vida grande quando se renunciou á guerra…” (ibid.) Isto é, renunciar a esta energia, a este poder natural, é renunciar á natureza da contradição existencial, que é a natural guerra da vida.

   E através de uma metáfora, ele compara esta renúncia ou atitude passiva, a uma vaca moral, que na sua consciência untuosa ou oleosa, é muito feliz, mas que no entanto, não desperta nenhuma inveja.

   E utilizando mais metáforas, ele expõe agora alguns exemplos, que contêm uma concepção diferente e mais relativa do conceito de paz de alma, mas que é mais natural, humana e concreta, ou seja, sem aquele conteúdo estranho de aspiração cristã. E passo a citar alguns:

“Paz de alma pode ser, por exemplo (…) o começo do cansaço, a primeira sombra que a noite, (…) espalha. (…) a gratidão inconsciente por uma feliz digestão (…) ou a calma do convalescente para quem todas as coisas têm um sabor novo e que espera… Ou o estado que se segue a uma forte satisfação da nossa paixão dominante, o bem-estar de uma rara saciedade. Ou a fraqueza senil da nossa vontade, dos nossos desejos, dos nossos vícios. Ou a preguiça (…) Ou a admissão de uma certeza (…) após uma longa tensão e tortura pela incerteza. Ou finalmente a expressão de maturidade e mestria no fazer, criar, produzir, querer, a respiração tranquila, a alcançada liberdade do querer.” (ibid.)

   E termina com a seguinte proposta: diz que talvez o crepúsculo dos ídolos, ou seja, o fim das verdades absolutas, seja uma forma de paz de alma.       

   E no capítulo, Nietzsche apresenta o instinto da vida como sendo o fundamento ou valor supremo da natureza humana. E de seguida faz um ataque em absoluto a qualquer tipo de ética ou moral baseada no dever. Passo a citar: “- Erijo um princípio em fórmula. Todo o naturalismo na moral, isto é, toda a moral sã está dominada por um instinto da vida” (ibid.) E aqui pode-mos notar alguma influência do instinto de Schopenhauer, mas também sublinhar o indício de uma crença de Nietzsche numa moral sã, ou seja, saudável, que nos remete para um tipo de saúde natural. Recorde-mos por exemplo o sol que o inspira. E de seguida ele diz:

“ qualquer mandamento da vida que é acumulado [ou concentrado] por um determinado cânon do deve-se e não se deve, qualquer restrição e aversão é assim eliminada do caminho da vida. [pois] A moral antinatural, isto é, quase toda a moral que até agora foi ensinada, venerada e pregada, se vira contra os instintos da vida – é uma condenação ora secreta, ora declarada e insolente destes instintos.” (p.41)

   E sobre essas morais tradicionais antinaturais, que na sua crítica visa em especial o cristianismo, ele considera que a ideia de Deus, é utilizada como sendo o maior inimigo do homem e da vida:

“ Ao dizerem Deus vê no coração, dizem não aos mais baixos e mais altos desejos da vida e assumem Deus como inimigo da vida…[pois] O santo, em que Deus tem o seu agrado, é o castrado ideal…[logo] A vida acaba onde começa o reino de Deus… (ibid.)

   E no capítulo, ele vai inferir e afirmar que qualquer valor moral construído, é sempre no seu entender, um tipo natural de consequência que parte do princípio da autenticidade da própria vida. Dai o seu puro vitalismo e a necessidade de combater qualquer valor que não se baseie na própria existência do homem. E por tudo isto a sua visão antropológica e ontológica do ser humano.

   E começa por inverter as posições, ou seja, ironicamente, ele diz que a rebelião contra a vida feita pela moral cristã, é um pecado. E que porque já compreendemos este sacrilégio, da mesma forma também podemos compreender outra coisa: “a inutilidade, a aparência, o absurdo e a mentira de uma tal insurreição.” (ibid.) E como qualquer valor é construído a partir do princípio da própria vida, ele diz:

“Uma condenação da vida (…) [é] apenas (…) o sintoma de um determinado tipo de vida; (…) [pois] é a própria vida que nos força a fixar valores; (…) [E por isto] Dai se segue, pois, que aquela contra natureza de moral, que concebe Deus como anti conceito e condenação da vida, é unicamente um juízo de valor da vida (…) da vida moribunda, enfraquecida, cansada, condenada.” (ibid.)

   E conclui com a seguinte martelada: diz que esta moral anti natural, é o próprio instinto da decadência enquanto negação da vontade de viver. E que este próprio instinto, é o juízo dos condenados, juízo que de si mesmo, faz um imperativo que diz: “afunda-te” (p. 42)

   E no capítulo, Nietzsche dá uma martelada final aos moralistas. Afirma a sua visão um pouco fatalista da vida e a sua tendência romântica, colocando o coração, o amor ou o sentimento, como o princípio da compreensão da profundidade do homem. E começa por afirma que: “ingenuidade é ainda afirmar em geral: [que] o homem deveria ser assim e assado!” (ibid.) E que”…qualquer miserável moralista vadio se atreve a dizer: [que] não, o homem deveria ser de outro modo. (ibid.) Mas que mesmo assim, este miserável e hipócrita, quando diz: “tu deves ser assim e assado! Não deixa de se tornar ridículo. (ibid.)

   E de seguida Nietzsche expõe-nos a sua posição: “A realidade mostra-nos uma riqueza encantadora de tipos, a exuberância de um pródigo jogo e mudanças de formas;” (ibid.) daí que “O singular [ou seja, o individuo particular] é um bocado de fatum [isto é, uma certa determinação do destino] por diante e por trás [ou seja, pelo futuro e pelo passado] uma lei mais, uma necessidade mais, para tudo o que acontece e será.” (ibid.)

   E por tudo isto ele afirma: ”Dizer-lhe modifica-te [ao individuo] significa exigir que tudo mude, inclusive para trás… E, de facto, houve moralistas consequentes que quiseram que o homem fosse de outro modo, (…) virtuoso (…) como beato: [mas que] para isso, negaram o mundo!” (ibid.)

   E continua: “A moral, ao condenar por si (…) pontos de vista, considerações e intenções relativas á vida, é um erro específico, do qual não se deve ter compaixão, uma idiossincrasia de degenerados, que originou um dano geral imenso! (Ibid.)

   E continua a expor a sua posição: “Nós, imoralistas, escancarámos, pelo contrário, o nosso coração a toda a classe de compreensão, intelecção e aprovação. Não negamos com facilidade, buscámos a nossa honra em ser afirmativos. (ibid.)

   E explica que por tudo isto, ou seja, consequentemente, os olhos dos imoralistas, focam-se mais e servem-se mais “… de tudo o que a santa loucura (…) da razão doente do sacerdote rejeita; (p. 43) Ou seja, focam-se e servem-se, de tudo o que existe na lei da vida. E termina assim: “…nós mesmos, imoralistas, somos aqui a resposta…” (ibid.)     




Bibliografia:

Nietzsche, Friedrich (1979), Ecce Homo, “Como se chega a ser o que se é”,
tradução e prefácio de José Marinho, Lisboa: Guimarães edit.

Nietzsche, Friedrich, Crepúsculo dos Ídolos, “Como se filosofa com o martelo”,
tradução de Artur Mourão, Lisboa: Edições 70, Lda [1888]