Passam os dias… e eu a negociar a
minha fé em qualquer coisa real: um investigador obscuro da paradoxal
existência. No entanto, é subjectivamente impossível, o eu inteligível, a minha
peculiar percepção humana, distanciar-se objectivamente de mim. Isto é, da minha
vida… Mas o que será a minha vida? Será o dado empírico desta, suficiente para
uma solidificação da ordem geral dos factos? Ou não será este um assunto de fé?
Ou de arte? Neste momento, vá lá que ainda vou tendo alguns cigarros no bolso,
e umas moedas, para tomar um café e ver as raparigas passarem nos dias,
deslumbrantes, no seu ritmo, frenético, e ondulante. Mas quem? As raparigas ou
os dias? Tanto faz… de sapatilhas ou saltos altos, com ancas e com cabelos, de
calças rasgadas ou de vestido, tudo passa, por entre as árvores e sobre esta
pedra branca, de cor cinza, milenar. Mas serão elas reais? Devo tocar-lhes a
alma? A quem? Às mulheres ou às pedras? A questão é que esta não é a minha
vida. A minha vida está momentaneamente presa na orla de um qualquer vácuo…
quente e prestes a explodir. Temos então esta não vida que eu levo, aquela que
é minha e está suspensa na berma de uma profunda sombra, e a vida em si mesmo:
independente como um rio que corre, puro e transparente, sem história e sem
rosto, com fundamento caótico e com um princípio ausente: um caixão do tamanho
do Mundo. Mas esta vida que tenta correr em mim e que não é nem a vida em si
mesmo e nem a minha vida em mim mesmo, é antes: a vida de todos que tenta
correr em mim. É a vida histórica, determinada pela civilização, pelas guerras
e conquistas: territoriais, cívicas, religiosas, políticas, financeiras,
culturais. Mas esta ultima vida, mais uma vez, esta não é a vida em si mesmo,
nem tampouco a minha vida: que observa e procura a essência dos objectos e
sensuais vestidos. A minha vida mesmo, essa, acampa num dia de sol para lá
deste caos, e dele ressurgirá após impulso. Mas não como uma mera reacção diacrónica
da vida histórica dos outros. Digamos que: o ar que respiro não é de ninguém.
Mas então de onde provem o sopro da vida? Aquele olhar intenso e fascinante que
as raparigas que passam possuem? Talvez que do outro lado, para além do caos,
onde as vidas acampam, eu apenas esteja sentado a fumar cigarros e a ver a
lucidez dos corpos que passam. E a síntese desta modesta imagem, é que em
antítese, eu não posso aceitar esta minha vida. Porque a partir do momento em
que a aceite, estarei morto, nesse caótico caixão imenso e transparente do
tamanho do Mundo: onde as raparigas passam embrulhadas nas suas mágoas
adocicadas, como quem em desespero procura um simples abraço qualquer que venha
do outro lado do Mundo.